segunda-feira, 4 de fevereiro de 2008

Esquecer em tempos de tecla "save"



Na era da informação em tempo real,

por que temos tanto medo de não lembrar?

Enquanto somos levados a fazer constantes "upgrades"

nas memórias de nossos computadores,

somos cada vez mais assombrados

pelo temor do esquecimento.

O medo de envelhecer,

tão presente em nossa cultura,

está ligado à sensação inquietante de perda progressiva da memória,

associada ao funcionamento das redes neuronais do cérebro.

Em livros de vulgarização que ganham amplo espaço nos mídia,

neurologistas divulgam notícias alarmantes:

os seres humanos começam a perder neurônios

entre os 9 e os 14 meses de idade.

Após conquistar sua maior façanha, aprendendo a andar,

são integrados a uma nova versão de envelhecimento e morte:

a “morte neuronal gradativa” .

Envelhecer e esquecer tornam-se assim problemas precoces,

a serem mitigados por novos fármacos

e por toda sorte de fitness cerebral.

Por outro lado, nossa disponibilidade para acolher

o fluxo frenético de informações,

nas atividades mais cotidianas

-quando, por exemplo, temos de nos recordar

de variadas senhas para acessar serviços-

também parece corroer paulatinamente a capacidade de lembrar.

As notícias que nos alcançam pelos mais variados meios,

em tempo real, na velocidade com que se sucedem

e apagam mutuamente,

também colaboram para produzir efeitos de esquecimento.

Esse fenômeno se expressa igualmente

nas descrições de novas doenças catalogadas,

tais como síndrome do pânico,

mal de Alzheimer, "burnout",

formas variadas de estresse e depressão.

"Burnout" , por exemplo,

é uma síndrome vinculada ao estresse ocupacional e profissional

e tem seu nome ligado ao verbo inglês

"to burn out", que significa queimar por completo,

consumir-se integralmente.

Essa síndrome data do início dos anos 70.

No artigo “Esgotamento total”,

o médico Ulrich Kraft menciona como um dos traços da enfermidade

a “memória afetada” e acrescenta:

“Especialistas concordam que, por si só,

uma jornada de 60 horas semanais não causa doença,

contanto que se encontre o equilíbrio entre tensão e relaxamento.

Pacientes afetados pela síndrome, entretanto,

ultrapassaram muito a ‘fronteira da adaptabilidade às demandas’.

Os sistemas internos de processamento do stress

dessas pessoas sofrem de sobrecarga crônica” .

A lógica da produtividade, do curto prazo,

tanto nas relações de trabalho quanto nas ligações pessoais,

tende a curto-circuitar o sentimento de continuidade do vivido,

a produzir couraças que impedem a livre circulação dos afetos do corpo,

abrindo vastos espaços brancos na memória.

Esse sentimento de fragmentação,

de descontinuação e esgarçamento das lembranças

está presente em uma já extensa filmografia

desta primeira década do século XXI.

Basta lembrar os filmes “Amnésia”, de Cristopher Nolan (2001),

“Spider”, de David Cronenberg (2002),

“O Homem Sem Passado”, de Aki Kaurismäki (2002)

e “Brilho Eterno de Uma Mente Sem Lembranças” (2004),

de Michel Gondry.

Este último põe em cena uma empresa

que deleta lembranças dolorosas e remete,

assim, a uma paradoxal problemática contemporânea:

imersos em uma lógica de curto (ou melhor, curtíssimo) prazo,

solicitados a nos adequarmos à rapidez dos fluxos,

à dissolução de perspectivas de continuidade,

ao imediatismo produtivista

também expresso na imediatez da produção

e circulação de informação,

somos cada vez mais tragados pelo esquecimento.

Por outro lado, não parece ter-se resolvido o problema

que Nietzsche apontara no final do século XIX :

o ressentimento com relação ao caráter irreversível do tempo,

face à impossibilidade de se voltar atrás para mudar fatos e atos,

bastante comum quando retrocedemos

imaginariamente no tempo,

evitando (também imaginariamente)

um acidente ou uma perda afetiva.

Nesse sentido, a instigante e singular valorização do esquecimento,

proposta por Nietzsche, soa mais do que oportuna hoje.

Observe-se que Nietzsche ousou valorizar

o esquecimento em pleno século XIX,

uma época marcada por um forte impulso historicizante,

por um evidente apego à memória, tratada

(como ele mesmo criticou) em geral como monumento.

De modo totalmente extemporâneo,

o filósofo celebrou a força do esquecimento,

considerando-a como a mais alta atividade do espírito.

Entendida como digestão,

a atividade de esquecer corresponde

a um processo sem o qual não nos livramos

do ressentimento com relação ao incessante escoar do tempo,

à sua irreversibilidade,

nem podemos nos instalar no novo e sermos,

assim, felizes.

É sobretudo na segunda dissertação da "Genealogia da Moral"

que Nietzsche propõe esse novo sentido para o esquecimento,

já não entendido como pura passividade,

como simples desgaste, tal como o de uma moeda

que tem sua efígie paulatinamente apagada pela usura do tempo.

Esquecer passa a ser considerado como uma força plástica,

modeladora, como uma faculdade inibidora e,

nesse sentido, como uma atividade primordial.

Afinal, para se viver em paz,

não se pode lembrar continuamente que o tempo

está passando e nos aproximando inexoravelmente da morte.

Assim como também não temos de nos lembrar

de bombear nosso coração ou de acionar nosso processo digestivo

para seguirmos vivendo.

Como afirmou René Leriche,

a saúde mesma equivale à vida “no silêncio dos órgãos”,

o que todos notamos quando um corte no dedo não nos deixa

mais esquecer de que esse dedo existe.

Esquecer, para Nietzsche, seria não apenas uma atividade,

mas uma atividade primordial,

primeira: o esquecimento não viria apagar as marcas

já produzidas pela memória.

Antecedendo à própria inscrição de marcas,

o esquecimento impede, inibe qualquer fixação.

Nesse sentido,

a memória é que passa a ser pensada como uma “contra-faculdade”.

É a memória que viria se superpor

ao esquecimento, suspendendo-o,

impedindo sua atividade salutar e fundamental.

Nietzsche desenvolve essa concepção para enfatizar

o caráter paradoxal da tarefa que a natureza

se impôs em relação ao homem:

sendo todo animal puro esquecimento,

a tarefa de criar, de cultivar um animal que pode prometer.

O aspecto estranho e inquietante dessa tarefa só pode ser avaliado

em toda a sua dimensão por quem atribui

ao esquecimento sua plena e rigorosa positividade.

Ainda na "Genealogia", Nietzsche remete o esquecimento ao processo

de digestão, arrancando o tema da digestão do campo da mera

fisiologia para trazê-lo para a esfera da discussão filosófica.

Dessa forma, inventa uma noção de corpo bastante singular:

na medida em que o processo da digestão passa a ser estendido

para o campo da “alma” (termo significativamente anacrônico),

a própria “alma” é engolida pelo que até então se associava apenas

a uma função física distinta da atividade do “espírito”.

Essa perspectiva fica ainda mais evidente quando lemos,

na parte III do livro " Assim Falou Zaratustra",

a seguinte afirmação:

“o espírito é um estômago”.

Para marcar que não se trata de uma afirmação de cunho

meramente metafórico, Nietzsche sublinha nessa frase a palavra “é”.

Ele enfatiza desse modo que o espírito não é semelhante a um estômago.

Ao tematizar o esquecimento como digestão

e engolir (literalmente) a alma ou o espírito no corpo,

o filósofo inventou uma nova abordagem do corpo

e do processo de digestão que põe definitivamente

em xeque a própria separação tradicional entre “corpo” e “espírito”.

O esquecimento não é, portanto,

comparável a um processo de digestão, mas,

como atividade do corpo, se confunde com a digestão,

que deixa de ser pensada apenas no campo da fisiologia,

como função de um corpo, por assim dizer, “desespiritualizado”.

Concluindo essa passagem da "Genealogia da Moral",

Nietzsche afirma que não pode haver felicidade,

jovialidade, esperança e -sublinha- presente,

sem a atividade desse aparelho inibidor que é o esquecimento.

Identifica então o homem em que esse aparelho se encontra danificado

a um dispéptico, termo emprestado à medicina que designa

aquele que tem dificuldade de digerir.

Dispéptico seria, segundo Nietzsche,

quem nunca se livra de nada, quem não “dá conta” de nada.

Mais literalmente ainda: não dando cabo de nada,

esse homem dispéptico, ressentido,

nunca fica pronto para o novo,

para o presente, arrastando sempre consigo as correntes do passado,

que entravam cada vez mais seu caminhar.

Torna-se refém de seu passado e de suas marcas.

Ora, o que sucede atualmente, em que o esquecimento

não parece se dar no sentido nietzschiano, favorável à vida,

à saúde e à alegria?

Podemos arriscar a hipótese de que,

com a configuração de novas máquinas de memória,

inumanas, não mais analógicas à fisiologia humana,

parece ter se intensificado contemporaneamente um temor difuso,

certa sensação de “desespiritualização”,

de impotência ante as avassaladoras estimulações

e solicitações externas.

O aspecto difuso do medo caracteriza,

aliás, a síndrome do pânico, que tem como uma de suas marcas

justamente a ausência de contornos nítidos do inimigo

ou da ameaça, uma generalização do pânico,

que se desconecta dos mecanismos de sobrevivência

para se espraiar de modo indeterminado por todos os lugares

e situações, em uma semelhança visível com a lógica (viral)

do terrorismo e do contra-terrorismo.

Essa sensação de “desespiritualização”,

de entrave da potência transformadora e

plástica do esquecimento, se expressa significativamente

por uma crescente demanda de espiritualidade,

em conexão com os novos meios tecnológicos,

como ressaltou o sociólogo português Hermínio Martins.

Martins desenvolveu em seus textos o tema do “gnosticismo tecnológico” ,

fenômeno bastante associado a especialistas em software e computação.

A velocidade crescente dos fluxos em que

o homem contemporâneo é tragado

(e de que é sobretudo descartado e expelido)

tende a corroer nossos estômagos abarrotados

(e paradoxalmente vazios),

gerando ao mesmo tempo desconforto,

angústia e fechamento para uma ação transformadora de mundo.

Como esquecer é uma atividade do corpo entendido

para além da distinção corpo-alma,

podemos também concluir que a experiência desse corpo

“desespiritualizado” se empobrece e desativa.

Corre-se então atrás da “capacidade de memória”

dos computadores e se tende a emular máquinas cibernéticas.

Por isso, uma das pesquisas mais priorizadas pelos neurocientistas atuais,

e enfaticamente divulgada por meios de comunicação de massa

(de programas em TVs aberta e a cabo até revistas e jornais),

diz respeito ao incremento, à otimização da memória humana.

Na medida em que a memória é eqüacionada como processamento

de informação e o corpo elidido em favor do cérebro

(entendido em geral pelo modelo computacional),

podemos prever que as sombras do esquecimento

não deixarão de se espraiar ameaçadoramente

pela cultura contemporânea,

pouco afeita à lentidão do esquecimento,

à atividade da digestão.

Mostra-se, assim, de que modo a intensa problematização

atual do risco de esquecimento diz respeito a uma relação

igualmente problemática com a temporalidade:

na velocidade crescente solicitada aos corpos,

como ativar a potência salutar do esquecimento,

como conquistar o tempo necessário para a digestão?

Digerir leva tempo.

Um tempo não mais pensado como caminho irreversível

(e cada vez mais precoce) para a morte,

mas acolhido e alargado, em favor da vida

Maria Cristina Franco Ferraz

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