sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Escandalosa sinceridade



Como anda sua capacidade de abstração?
Vamos lá,
tente imaginar um político há muito tempo no poder,
com um comportamento suspeito,
que resolve convocar uma entrevista coletiva
e abrir o coração.
Imaginemos o presidente do Senado nesse papel
- uma escolha aleatória, claro.
Ele falaria diretamente para a nação
e confirmaria que facilitou a vida de parentes e aliados,
que acha justo que mordomos e motoristas da sua família
ganhem um salário de empresários (pagos com dinheiro público),
mas que está cansado de varrer tudo isso para baixo do tapete
e que se sente totalmente constrangido por ter chegado a essa idade
sem ter tomado cuidados com sua reputação.
Vamos imaginar além?
Que o presidente da República admita que defende
o presidente do Senado só porque precisa do apoio dele
nas eleições de 2010.
Que em política tudo é troca,
tudo é concessão,
um limpa a barra do outro, e é isso aí.

Imagine essas declarações em rede nacional, ao vivo.
Não seria mais bombástico do que as mentiras
e enrolações a que tanto estamos acostumados?
É do admirável dramaturgo e escritor Domingos Oliveira
a frase que me inspirou esta crônica. Diz ele:
"A única coisa que ainda escandaliza hoje em dia é a sinceridade".
A sinceridade destroi castelos de areia.
É a realidade sem anestesia.
Ela não estimula reticências,
não teatraliza as relações humanas,
não debocha da credulidade alheia,
não falsifica impressões.
A sinceridade é de vanguarda.
É tão soberana que emudece a todos.
É tão inesperada que impede retaliações.
A sinceridade é o ponto final de qualquer discussão.
Quer deixar alguém perplexo?
Fale a verdade.
As pessoas sábias são admiradas quando contam o que sabem,
mas impressionam mesmo é quando serenamente confessam:
não sei.
O "não sei" é comovente.
Os melhores filmes, as melhores peças,
os melhores livros tratam sobre a nossa ignorância,
não sobre a nossa genialidade.
Através de que elo casais aparentemente incompatíveis mantêm-se unidos?
Quem espia de fora adora especular sobre motivos maquiavélicos,
mas eu apostaria no oposto da maquiavelice:
num mundo tão intoxicado por falsidades,
a sinceridade é que tem servido de Cupido.
Eu errei.
Eu traí.
Eu fiz asneira.
Eu me iludi.
Eu sou assim.
Extra, extra!
À solta alguém que se assume,
que perdoa seus próprios tropeços,
que não recorre ao Photoshop na hora de expor o caráter.
Escândalo é alguém te olhar nos olhos e admitir com tranquilidade:
nunca li Guimarães Rosa, nunca soube entender.
Eu já disse "te amo" sem ter certeza.
Não tenho confiança nas minhas decisões.
Não uso filtro solar.
Dirijo depois de beber alguns cálices de vinho.
Eu fiz um aborto.
Estou sofrendo por amor.
Fui deixada.
Já pensei em suicídio.
Já pensei em morar no meio do mato.
Me arrependo de ter filhos.
Me arrependo de não ter tido filhos.
Casei por dinheiro.
Casei por medo da solidão.
Não casei porque não me quiseram.
Não perdoo meu pai.
Fui injusta com minha mãe.
Perdi oportunidades.
Vacilei com um amigo.
Estou sem paciência com os outros.
Quero começar a viver enquanto há tempo.
Não tenho talento.
Tive sorte.
Nunca passei a perna em ninguém.
Nunca menti para me safar.
Menti demais para não magoar.
Nunca fui agradável.
Nunca inventei um personagem.
Inventei vários personagens.
Não sei direito quem sou.
Não sei.
Extra, extra!
MARTHA MEDEIROS

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