segunda-feira, 7 de julho de 2008

Propósitos e Liberdades





Desde que nascemos e a nossa vida começou,
não há mais nenhum ponto zero possível.
Não há como começar do nada.
Talvez seja isso que torna tão difícil

cumprir propósitos de Ano Novo.
E a bem da verdade,
o que dificulta realizar qualquer novo propósito, em qualquer tempo.
O passado é como argila que nos molda

e a que estamos presos,
embora chamados imperiosamente pelo futuro.
Não escapamos do tempo,

não escapamos da nossa história.
Somos pressionados pela realidade e pelos desejos.
Como pode o ser humano ser livre
se ele está inexoravelmente premido

por seus anseios
e amarrado ao enredo de sua vida?
Para muitos filósofos,

é nesse conflito que está

o problema da nossa liberdade.
Alguns tentam resolver esse dilema afirmando

que a liberdade é a nossa capacidade de escolher,
a que chamam livre-arbítrio.
Liberdade se traduziria por ponderar e eleger

entre o que quero e não quero

ou entre o bem e o mal, por exemplo.
Liberdade seria, portanto, sinônimo de decisão.
Prefiro a interpretação de outros pensadores,
que nos dizem que somos livres quando agimos.
E agir é iniciar uma nova cadeia de acontecimentos,
por mais atrelados que estejamos a uma ordem anterior.
Liberdade é, então,

começar o improvável e o impensável.
É sobrepujar hábitos, crenças,

determinações, medos, preconceitos.
Ser livre é tomar a iniciativa de principiar

novas possibilidades.
Desamarrar.
Abrir novos tempos.
Nossa história e nosso passado

não são nem cargas indesejadas,
nem determinações absolutas.
Sem eles, não teríamos de onde sair,

nem para onde nos projetar.
Sem passado e sem história, quem seríamos?
Mas não é porque não pudemos

(fazer, falar, mudar, enfrentar...)

que jamais poderemos.
Nossa capacidade de dar um novo início

para as mesmas coisas e situações
é nosso poder original
e está na raiz da nossa condição humana.
É ela que dá a vida uma direção e um destino.
Somos livres quando, ao agir, recomeçamos.
Nossos gestos e palavras,

mesmo inconscientes e involuntários,
sempre destinam as nossas vidas para algum lugar.
A função dos propósitos é transformar esse agir,
que cria destinos, numa ação consciente e voluntária.
Sua tarefa é a de romper com a causalidade aparente da vida
e apagar a impressão

de que uma mão dirige a nossa existência.

Os propósitos nos devolvem a autoria da vida.

(Dulce Critelli. Folha de São Paulo, 24/01/2008)

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