sexta-feira, 10 de abril de 2009

Pra isso existe Deus...


CONSULTO o calendário:
hoje é sexta-feira da paixão, 10 de abril.
Me deu vontade de escrever
de um jeito diferente,
fazendo de conta que hoje é terça-feira
da semana que vem.
Se me disserem que isso não é possível contesto
dizendo que na literatura tudo é possível...
E assim, assentado diante do computador,
corrijo a data:
é o dia 14,
dia que hoje ainda não existe.
O hoje já passou.
A Sexta-Feira da Paixão ficou para trás.
Isso, segundo a medição dos calendários escritos.
Mas não segundo os calendários da alma.
Os calendários da alma
não têm nem antes nem depois.
Na alma, o tempo é sempre presente.
A alma vive chamando de volta
um tempo que já passou:
isso tem o nome de saudade...
A alma é atrasada.
Não quer progresso.
Não quer ir para o futuro.
O que ela deseja mesmo
é voltar para o passado
porque é no passado que moram
os objetos que ela amou e perdeu.
A alma navega sempre ao contrário,
na direção do amor.
Sexta-Feira da Paixão faz voltar
o cheiro dos pobres que não tomavam banho.
É um cheiro inconfundível, comovente,
diferente do cheiro dos ricos que não tomam banho.
O cheiro de não tomar banho dos pobres é reverente.
E é por isso que os pobres vão à procissão
vestidos com ele.
Já o cheiro de não tomar banho dos ricos fede.
Faz pensar em sovaco.
O cheiro dos pobres que não tomavam banho
tem um lugar privilegiado nas memórias que escrevi
no livro "O sapo que queria ser príncipe".
Se o título o intriga, eu explico:
o sapo era eu, menino de roça desajeitado...
Marcel Proust deveria sofrer de uma saudade imensa
para escrever um livro tão comprido sobre o mistério
da procura do tempo que se perdeu,
sabendo que as águas de um rio não voltam atrás.
Ou voltam?
O desenhista Escher achava que sim
e até fez um desenho em que as águas voltavam atrás,
subiam um morro e viravam cachoeira.
E o escritor sagrado era de opinião igual
e escreveu
"lança o teu pão sobre as águas
porque depois de muitos dias o encontrarás"
(Eclesiastes 11.1 ).
As águas do rio da alma são circulares.
O que se pensa perdido volta.
E é pra isso que existe Deus,
pra fazer as águas do rio do tempo voltarem
e assim nos curar da saudade...
Hoje, Sexta-Feira da Paixão.
Nas Minas Gerais antiga,
as mulheres pobres já
separaram as pedras pesadas
que equilibrarão na cabeça na procissão.
É preciso sofrer pra seguir Deus,
caminhando devagar...
Deus é uma pedra pesada
que se carrega na cabeça.
Alguns carregam a pedra do lado de fora,
como as mineiras analfabetas.
Outros carregam a pedra do lado de dentro,
doloroso cálculo cerebral.
Terminada a procissão,
as mineiras põem a pedra no chão
e ficam felizes de novo.
Terminada a procissão,
as pedras que vão do lado de dentro
continuam doendo.
Hoje, Sexta-Feira da Paixão,
os berra-bois berravam
seus zunidos sinistros noite a dentro.
Eram os uivos dos demônios que voavam livres
nesses três dias em que Deus estava morto.
Naqueles tempos o poder dos demônios era maior.
Sei que acontecia assim porque minha mãe me contou.
E por falar em berra-boi
-quem não sabe o que é berra-boi
que o procure no dicionário-
eu tenho um, pequeno, brinquedo, feito de bambu...
De qualquer forma, acreditando ou não,
faria bem para a alma ouvir
a marcha fúnebre de Chopin
ou a segunda sinfonia de Mahler.
Rubem Alves
Folha de S.Paulo

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